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COMO A ESCALADA DO CONFLITO DESCE LADEIRA ABAIXO

  • Foto do escritor: Rochelle Jelinek
    Rochelle Jelinek
  • 23 de jun. de 2022
  • 5 min de leitura

Quando um conflito chegou na fase da guerra, ainda é possível resolver? Melhor negociar ou lutar?


Como surge um conflito? Você chega na cozinha e tem um prato sujo na pia, vai lá e lava. No dia seguinte, vai lá e está de novo. No outro dia tem uma pia cheia. E no quinto também. Os dias passam e os pratos na pia se acumulam. Chega um dia que você não quer lavar, quer jogar o resto da comida na cara e quebrar o prato na cabeça de alguém. É uma analogia, claro, mas explica como os degraus de um conflito vão de um prato na pia até o abismo.


Um conflito nunca começa do nada, de um dia pro outro, ou causado só por um lado. Cada parte tem a sua contribuição - nem que seja porque não criou formas de gerir para evitar o problema antes que ele acontecesse - , muito embora só enxergue culpa do outro. É uma escada que vai descendo ladeira abaixo. [1]


1º degrau : endurecimento

Começa com uma divergência simples. Pontos de vista diferentes. As pessoas não conseguem mais se abrir espontaneamente, tornam-se seletivas em relação ao outro e desenvolvem restrições interiores não ditas. As partes ainda tentam fazer funcionar mas se não conversarem abertamente para esclarecer e compreender o ponto de vista do outro, o conflito torna-se mais tenso e desce mais um degrau.

2º degrau: debate/polêmica

A palavra “debate” vem do francês e significa “bater, golpear”. Esse modelo de conversa supõe que o outro precisa ser derrotado na controvérsia. Cada um busca ter razão e reforçar o próprio ponto de vista, que passa a ter o mesmo valor que o objeto inicial da discordância. Ter razão passa ser o ponto-chave.

Nesse nível as pessoas já estão polarizadas. Os argumentos são fortemente rebatidos e a discussão é desviada para o tema no qual cada pessoa se sente segura para promover insegurança no outro. Cada lado se fixa no seu próprio argumento e não consegue nem tem mais interesse em ouvir o ponto de vista do outro. Torna-se um jogo em que o que importa é mostrar a superioridade no debate. E aí desce mais um enorme degrau.

3º degrau: ações sem palavras

Cada um faz o que quer, e tem a sua opção como fato consumado. Ações, e não mais conversas, passam a definir os acontecimentos, e agora as partes passam a se olhar com desconfiança, o que causa mal-entendidos, que gera ainda mais desconfiança. As partes começam a procurar aliados que corroborem seu ponto de vista. A esta altura há bloqueio completo da empatia e cada lado se fecha nas suas suposições e rigidez, sem perceber as outras circunstâncias, perspectivas ou pontos de vista.

Daqui até os degraus seguintes o foco já deixou de ser o conteúdo inicial e fatos e o foco passa a ser a pessoa do outro. A pessoalização e personificação estão cristalizadas.

4º degrau: busca de coalizões

Cada um já tomou partido. Lados opostos se enfrentam. Não há mais diálogo, nem uma divergência entre duas pessoas, mas uma crise entre grupos opostos. Quem está a favor de um dos lados está contra o outro – e vice-versa – e cada lado se esforça para provar que está certo e o outro está errado. A desqualificação das pessoas é intensa. Os lados avançam para provar que o erro da teoria do outro. Cada um se esforça para trazer mais gente para o “seu” lado e reconhecer as “más intenções” do outro lado. A confrontação fica radical.

5º degrau: desmascarar/desacreditar o outro

O objetivo é fazer com que o outro perca a sua credibilidade moral. Cada lado julga ter descoberto as intenções maldosas do outro, e então se confrontam o grupo dos anjos X o grupo dos demônios. O cenário é de “nós heróis” X "os bandidos do outro lado". Surgem ataques sem consideração alguma pelo outro. Os ataques se tornam públicos e os agressores têm o compromisso moral de desmascarar o outro e desmoralizá-lo.

6º degrau: estratégias de intimidação

Hostilidade aberta e expressa. As partes em conflito passam a mostrar suas armas. “Se não for do meu jeito, você vai ver o que vai acontecer com você”. O outro passa a querer se vingar e vem o troco. E quem fez a ameaça fica refém dela, ou cumpre a ameaça ou perde a moral com o seu grupo.

Desse ponto em diante, cada degrau escada abaixo terá apenas o objetivo de destruição do outro. E todos sairão perdendo em algum grau. Não importa o lado.

7º degrau: ataques de destruição

Promessa é dívida e deixar de cumpri-la seria sinal de fraqueza. As partes julgam não haver alternativa senão partir para ação para ferir mortalmente o adversário com tudo que estiver a seu alcance. Sanções e castigos são a praxe.

O desejo de ambos é terminar o conflito, mas pela coerção e subjugação, querendo obrigar o outro a fazer o que se quer.

8º degrau: aniquilação total

O lema passa a ser: “Posso perder, mas o outro vai sair perdendo mais”.

9º degrau: juntos ao abismo

Se for preciso morrer para que o outro seja destruído, ok. Um casal em divórcio. Sócios em disputa. Um inventário sem fim. Uma guerra no trabalho. Aviões nas torres gêmeas. Carros-bomba em Beirute. Kamikazes em Pearl-Harbor.

Tudo começou um dia com um primeiro degrau: uma divergência em que cada um achava que só ele estava certo.


E como resolver? Negociação em todas as fases.

Nas três primeiras fases, ainda é possível entrar no modo racional, estabelecer um diálogo construtivo e procurar resolver entre si, eventualmente assistidos.

Do terceiro ao sexto estágio, o conflito não será mais resolvido sem a ajuda de um terceiro neutro, que oferece um espelho para os envolvidos e auxilia na criação de ideias para construir uma solução.

Do sétimo ao nono degrau, na fase do combate já travado, ainda é possível chegar a uma solução, porém não mais sem perdas - nessa fase ambos já perderam em vários aspectos - tempo, dinheiro, energia, reputação, credibilidade, e independente da área do conflito (familiar, trabalhista, empresarial, relacional, comercial...) geralmente desemboca num processo judicial e com estragos já sem reparação. Um terceiro poderá ajudar - talvez - a estancar o conflito, mas há prejuízos - internos e externos - que nunca serão reparados.


A escalada do conflito é um caminho praticamente sem volta. Repensar formas de evitar e gerir conflitos para não chegar no abismo é a única saída que permite subir de volta os degraus.




[1] O economista e mediador austríaco Friedrich Glasl constatou que os conflitos seguem um padrão repetitivo de evolução e com base nisso ele estruturou um modelo de análise do conflito chamado de escalada do conflito, que tem 9 degraus descendentes. GLASL, Friedrich. Autoajuda em conflitos. São Paulo: Antroposófica, 1999.

 
 
 

1 Comment


andersonoliveiradto
andersonoliveiradto
Jun 23, 2022

Lessa leitura veio em um momento bem adequado. Gratidão.

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